Quem sou eu

Minha foto
Advogado, Membro da Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da OAB/RJ, Jornalista, Consultor de Políticas Públicas e Gestor em Segurança, Cursou Psicologia Jurídica na UERJ, Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad Del Museo Social Argentino - Buenos Aires – ARG; Oficial da Reserva do Exército.

25 de agosto de 2005

Autor, Marcel A. Freitas – antropólogo/mestre Psicologia*

O propósito deste artigo é examinar a importância da Psicologia Jurídica tendo como pano de fundo as representações sociais de família e infância no discurso jurídico. Dentro de um campo tão amplo como é o da Jurisprudência, o recorte deste artigo contempla as relações entre as representações sociais dos discursos jurídicos que transitam pelas Varas de Família com os discursos vigentes no sendo comum, como transformações nestes discursos podem ser desencadeadas pela interdisciplinaridade do Direito com outros ramos das ciências humanas.

Tal análise se justifica em função da imperatividade de uma abordagem multidisciplinar no atual Direito de Família, reconhecida a sua complexidade no trato de temas conflituosos e a interdisciplinariedade dos campos da ciência para o exame e solução dos casos, de onde emerge a figura do(a) psicólogo(a) jurídico(a). Todavia, a utilização da Psicologia aos problemas jurídicos ainda é um tema pouco explorado no meio acadêmico e mesmo na magistratura.

Por representações sociais podemos adotar o sentido proposto por MOSCOVICI (1978), que resgata e amplia, numa perspectiva psicossociológica, o conceito Durkheiminiano de representações coletivas. Nesta nova forma, são entendidas como um sistema de valores, noções, julgamentos, conceitos concernentes a fenômenos sociais e, por isto, permitem coerência e permanência da vida cotidiana, favorecendo também a intercomunicação grupal. Devem ser encaradas como ‘teorias’ do senso comum, portanto, carregadas de símbolos e afetos.

A interface entre Psicologia da Família e Direito de Família
Conforme VILELA (1979), a área relativa à família no contexto jurídico carece de mais estudos que elucidem a forma como os indivíduos vivenciam concretamente suas experiências familiares e como pensam sua inserção no núcleo familiar. Investigações sobre a separação dos casais, bem como as novas formas de parentalidade também são raros. Todavia, a prática da perícia psicológica nos casos de litígios jurídicos – realizada a partir de testes e entrevistas, entre outros métodos – tem muito a informar acerca destas questões que não se restringem ao campo legal.

Os psicólogos que trabalham nas Varas de Família lidam tanto com casais experienciando processos de rompimento e com crianças envolvidas nestes processos quanto com concepções jurídicas acerca da família e da infância diferentes das concepções correntes em Psicologia. Assim, a prática de psicólogos jurídicos mostra questões relevantes. Percebe-se que, em alguns casos, pode haver uma incongruência entre o que o Juiz fornece como solução para uma determinada família ou casal e o que os sujeitos envolvidos acreditam ser a melhor saída.

Neste caso, as decisões judiciais exprimem valores estranhos a algumas destas pessoas que necessitam de resolução legal para suas querelas. Isto se dá porque em certas ocasiões há grandes discrepâncias culturais no tocante as noções de família, tanto por parte dos casais que protagonizam os processos jurídicos quanto por parte dos representantes da lei. Além disso, também existiriam variações nas interpretações jurídicas por parte de famílias de classe alta e baixa, por exemplo, sobre um mesmo tema.

Isto adviria, com tem mostrado a Psicologia e a Sociologia Jurídicas, de noções várias em relação ao que é ou não família, infância, juventude, etc. O tema da família tem sido pesquisado por diversos sociólogos e psicólogos no Brasil porém, no contexto jurídico tem sido objeto de pouca exploração acadêmica. Não obstante, o Direito de Família, com o advento da Constituição Federal de 1988, pela sua própria constitucionalização e ante a sua maior abrangência, está abrigando novas entidades familiares e, consequentemente, solicita uma abordagem multidisciplinar.

FERRO-BUCHER (1992), em um texto sobre o significado da lei para famílias envolvidas com o sistema legal, defende que os problemas para psicólogos ou assistentes sociais que atuam nesse contexto surgem quando deparam com culturas específicas de família: “essa cultura própria da família, nós a definimos pelo sistema de valores que ela constrói, as regras que ela estrutura em seu micro sistema psicossocial” (1992:477). Por conseguinte, conhecer como se articula a relação entre a lei oficial e a cultura das famílias é algo crucial para se trabalhar nessas situações.

Deste modo, FERRO-BUCHER (1992) buscou compreender como as famílias percebem a lei e encontrou variações não somente no âmbito das famílias, mas também em função das condições sócio-econômicas de cada grupo familiar. Após apresentar as múltiplas concepções de lei sobre a família encontradas em sua análise dos protocolos de atendimento a famílias que recorreram à jurisprudência, a pesquisadora afirma:
“A desarticulação dos valores, as contradições entre os valores vigentes na sociedade e a forma como são assimilados pelas famílias e seus membros nos levam à necessidade de conhecer qual é o valor atribuído à mulher; qual é o valor atribuído à criança; qual é o valor atribuído ao casal? As respostas a essas questões é fundamental para que possamos trabalhar com essas famílias” (FERRO-BUCHER, 1992:479).

Ela constata que o universo simbólico/representacional da família em geral fica desconhecido para os profissionais que trabalham no contexto jurídico, e o sentido de uma ação individual pode ser visto de maneiras diferentes sob o ponto de vista legal e sob o olhar da cultura familiar onde tal ação se sucedeu. Diante disso, os estudos devem procurar entender as representações de famílias e de infância no discurso de casais que se valem dos serviços das Varas de Família e também como tais noções aparecem no discurso jurídico dominante. Daí viria uma das interfaces da Psicologia com o Direito.

Segundo ALVES (2003), não há como negar a importância do auxílio e da intervenção desse profissional, sendo que sua presença deveria tomar o caráter de obrigatoriedade no Juízo de Família. Ele considera que esta atuação está aos poucos sendo institucionalizada na estrutura judiciária mediante a instalação cada vez maior de serviços psicossociais forenses. Para ele, essa intercessão fundamenta-se na indelével realidade psicossocial multivariada dos processos judiciais de família.

A prática psicossocial tem revelado o quanto significativo se apresenta o desfecho judicial sob a moldura da intervenção do psicólogo jurídico, que enriquece o processo com avaliações sui generis do processo. Desta forma, o conhecimento mais detalhado das relações entre as representações sociais referentes às leis, aos conceitos de casal, de infância e aos processos jurídicos acerca da família contribui com os demais profissionais ligados ao poder judiciário na medida em que serve de referencial para deliberações mais adequadas à realidade da clientela.

Consequentemente, as pesquisas interdisciplinares ao campo da Psicologia e do Direito poderiam responder as seguintes questões: 1- quais são as conceituações e representações de família e de infância correntes na legislação brasileira; 2- quais as representações e conceituações de família e de infância recorrentes nas petições, pareceres e sentenças jurídicas; 3- quais as representações de família e de infância vigoram no discurso dos casais, oriundos de classes sociais diversas. Por fim, 4- quais as implicações destas representações sociais para os papéis atribuídos ao homem, à mulher e aos filhos, para as relações entre os membros da família e para as formas de organização familiar em julgamento.


Investigações sobre a família

Estudos sócio-históricos apontam para diferenças, no tempo e no espaço, na maneira de se conceber as relações familiares em classes e em grupos sociais múltiplos. Historicamente a concepção de família vem se configurando como uma instituição em constante transformação. De acordo com ARIÉS (1981), é a partir do século XVIII que se operam as principais transformações na organização familiar ocidental. O Estado passa a controlar e a estender seu poder por toda a vida cotidiana, deixando pequeno espaço para o indivíduo agir livremente. Com a Revolução Industrial inicia-se crescente separação entre o local de trabalho e o das outras práticas sociais.

O historiador menciona uma revolução na afetividade, onde o interior da família passa a ser o campo privilegiado do afeto. A família se torna refúgio do mundo externo, mundo este onde a coerção do Estado é presente quase que integralmente e, acrescentaríamos, o cristianismo, apesar de todos os golpes que sofreu, ainda é sólido. Cria-se, portanto, uma divisão entre o público e o privado. No século XIX a família ocidental surge com o feitio da família tradicional atual, ou seja, com predomínio do privado para as mulheres e crianças. Porém, no século seguinte, transformações radicais se processam em direção a um novo modelo familiar, onde “o homem voltou à sua casa, como a uma concha, à intimidade de sua família e, de vez em quando, à sociedade triada e colhida de alguns amigos” (ARIÉS, 1981:21).

Consolida-se, por conseguinte, o caráter privado da família, sendo a família extensa e multiparental pouco a pouco relativamente substituída pela família nuclear, composta de mãe-pai-filhos, cujos objetivos, ainda que ideais no mais das vezes, passam a ser o prazer e o afeto. Suas funções econômicas de reprodução do trabalho são ideologicamente camufladas. O casal companheiro, ligado por laços de afetividade numa união monogâmica fundamentada no amor e vivendo em função dos filhos, transforma-se no padrão de família.

Em relação ao Brasil, as investigações apontam que a família colonial se caracterizava por ser extensa e por possuir uma função primordialmente econômica. FREYRE (1961) foi um dos cientistas sociais que mais se dedicaram ao estudo da família nacional. Conforme ele, o modelo patriarcal de família, fundado na casa-grande e na senzala, correspondia ao sistema sócio-político e econômico mais amplo.

Segundo CORRÊA (1993), esta estrutura patriarcal vem sendo o molde dominante da família brasileira, um sistema relativamente fixo, onde os personagens, uma vez delineados, apenas se substituem ao longo das gerações. Para a autora, tal modelo é relativamente alterado após o advento da industrialização e da ruína das grandes propriedades rurais. O modelo que passa a vigorar então é a família conjugal, embora o poder simbólico do ‘patriarca’ permaneça, especialmente nas zonas rurais;
“Típico produto da industrialização, reduzida ao casal e aos filhos, (...) a finalidade do casamento não é mais principalmente a manutenção de uma propriedade comum ou dos interesses políticos de um grupo, mas sim a satisfação de impulsos sexuais e afetivos que na família patriarcal eram satisfeitos fora de seu círculo imediato” (CORRÊA, 1993:16).

Na visão de SARTI (1992), o ideal da família patriarcal é parte integrante das representações sobre a família que perpassa todas as classes sociais. Tomado como estrutura dominante, o modelo patriarcal permite a compreensão do privatismo e do patrimonialismo que ainda impera nas relações sociais brasileiras. A família patriarcal, enquanto estrutura ideológica, se impõe como paradigma social a toda sociedade. Desta feita é que a noção de família patriarcal é elemento constitutivo das concepções dos pobres urbanos sobre a família e sobre a infância, configurando-se como padrão de autoridade moral.

FONSECA (1993), sondando a compreensão da estrutura familiar de grupos de baixa renda no Brasil, apresenta um retrato da forma como se constróem as famílias pobres e os locus das crianças nestes contextos. Ela aponta diferenças entre a estrutura das famílias de classe baixa e das famílias abastadas em vários aspectos. Nas classes menos favorecidas o fenômeno da ‘circulação de crianças’ é freqüente, situação onde ela passa grande parte da infância e juventude em casas que não a dos seus pais. Ela vê repercussões indeléveis deste processo social para o psiquismo e para a cultura:
“Considero a prática de circulação de crianças o divisor de águas entre aqueles indivíduos em ascensão, que de fato adotam valores da classe média, e aqueles que, apesar de uma existência um tanto quanto confortável, permanecem ligados à cultura popular. Enquanto os primeiros concentram energias nos próprios filhos, criando um ambiente doméstico fechado em torno da escola e de carreiras futuras, os últimos recebem crianças de ramos mais pobres na sua unidade familiar, garantindo a continuidade dos laços e expondo seus filhos à influência diária da classe trabalhadora mais humilde” (FONSECA, 1993:122).

No entender da autora, o tipo dominante de família das classes média e alta no Brasil é o da família conjugal. Nesta organização, os menores são o foco central. Em outra modalidade de família, encontrada por ela nas famílias de estratos inferiores “cada membro do casal está envolvido numa rede consangüínea que exige constante demonstração de solidariedade, muitas vezes em detrimento do laço conjugal” (FONSECA, 1993:126), fazendo com que os laços de sangue prevaleçam sobre os ‘contratos’, como o casamento.

Assim, a pesquisadora indica que, nos grupos populares atualmente, algumas mães aceitam deixar seus filhos em lares substitutos temporariamente, visto que, naquele ethos, seu vínculo com a criança está garantido pela consangüinidade. Uma mãe então pode dispor de seu filho, inconscientemente, para firmar laços com a sogra ou para agradar a mãe. FONSECA (1993) conclui que este fenômeno pode ser um aspecto fundamental da estruturação familiar das classes de baixa renda no Brasil.

Concomitantemente a tais investigações, a temática da separação e do recasamento ganhou maior interesse por parte da intelectualidade. A legitimação das relações não oficializadas a partir da Constituição Federal de 1988 contribuiu para tal produção acadêmica. Legalmente o casamento é considerado uma instituição que regulamenta as relações entre homens e mulheres e que constitui a base para uma família. As relações de ‘concubinato’ foram, com isso, também regulamentadas como união estável de uma entidade familiar.


Considerações finais

É certo, como antes afirmado, que a intervenção do psicólogo jurídico não mais se limita somente ao subsídio de informações que timbram aparelhar as definições finais de guarda de filhos, por exemplo. Amplo espaço de atuação apresenta-se em todos as demandas relacionadas ao Direito de Família (ALVES, 2003). Assim, por exemplo, quando o casal tem o tecido afetivo rompido por razões subjetivas inúmeras, a verdade do litígio judicial não tem, a rigor, uma precisão absoluta.

É esse cenário de perdas, culpas, danos e responsabilidades o território de investigação do(a) psicólogo(a) jurídico(a), pois busca restabelecer o reequilíbrio moral e emocional dos contendores, a par da produção intelectual sobre tais assuntos. O âmbito de intervenção da Psicologia em face do Direito de Família tem sido reconhecido, proclamado e expandido, posto ser predominante o caráter multidisciplinar das demandas perante o juízo de família, não ficando mais restrita a atuação do(a) psicólogo(a) apenas às situações de disputa de posse, guarda e visita de filhos.

Em suma, conforme ALVES (2003), os profissionais da área psicossocial em Direito de Família estão oportunizando uma visão jurídica mais avançada e reconstrutiva da própria legislação familiar, na medida em que desvendam a psique humana, objeto maior do desate jurisdicional, e parafraseando o autor: em juízo de família, não se resolvem litígios; resolvem-se pessoas. Logo, a Psicologia deve oferecer condições para que as pessoas sejam escutadas enquanto sujeitos humanos inseridos numa cultura, e que a partir desta escuta possam redimensionar suas demandar e até mesmo avaliar se carecem mesmo de intervenção jurídica ou de outro tipo.
* Marcel de Almeida Freitas – antropólogo e mestre em Psicologia Social. Prof. - Depto. De Sociologia & Antropologia da UFMG.